
Crônica
O coração roubado
Eu cursava o último ano do primário e como já estava como o diplominha garantido, meu pai me deu um presente muito cobiçado: O coração, famoso livro do escritor italiano Edmondo de Amicis, best-seller mundial do gênero infanto-juvenil. Na página de abertura lá estava a dedicatória do velho, com sua inconfundível letra esparramada. Como todos os garotos da época, apaixonei-me por aquela obra-prima e tanto que a levava ao grupo escolar da Barra Funda para reler trechos no recreio.
Justamente no último dia de aula, o das despedidas, depois da festinha da formatura, voltei para classe a fim de reunir meus cadernos e objetos escolares, antes do adeus. Mas onde estava o Coração? Onde? Desaparecera. Tremendo choque. Algum colega na certa o furtara. Não teria coragem de aparecer em casa sem ele. Ia informar à diretoria quando, passando pelas carteiras, vi a lombada do livro, bem escondido sob uma pasta escolar. Mas... era lá que se sentava o Plínio, não era ? Plínio, o primeiro da classe em aplicação e comportamento, o exemplo para todos nós. Inclusive o mais bem limpinho, o mais bem penteadinho, o mais tudo. Confesso, hesitei. Desmascarar um ídolo? Podia ser até que não acreditassem em mim. Muitos invejam o Plínio. Peguei o exemplar e guardei em minha pasta. Caladão. Sem revelar a ninguém o acontecido. [...]
Passados muitos anos, reconheci o retrato de Plínio num jornal. Advogado, fazia rápida carreira na justiça. Recebia cumprimentos. Brr. Magistrado do futuro o tal que furtara meu presente de fim de ano! [...]
Quando o desembargador Plínio estava apoentado, mudei para o meu endereço atual. Durante a mudança alguns livros despencaram de uma estante improvisada. Um deles o Coração, de Amicis. Saudades. Havia quantos anos não o abria? Quarenta anos ou mais? Lembrei da dedicatória do meu falecido pai. Ele tinha boa letra. Procurei-a na página de rosto. Não a encontrei. Teria a tinta se apagado? Na página seguinte havia uma dedicatória. Mas não reconheci a caligrafia paterna. "Ao meu querido filho Plínio, com todo amor e carinho de seu pai."
Marcos Rey. In: Para gostar de ler: o coração roubado e outras crônicas. São Paulo: Ática, 1996.
Glossário:
1-Best-seller - Livro muito vendido, de muito sucesso.
2-Desembargador - Juiz de Tribunal de Justiça.
3-Magistrdo - Juiz
As crônica são textos curtos, para serem publicados em jornais e revistas. Seu assunto costuma ser o cotidiano, isto é, as coisas do dia-a-dia.
As crônicas podem apenas divertir ou trazer reflexões que despertam a consciência do leitor para certos aspectos da vida. Em geral, são narradas de forma leve, em linguagem descontraída e acessível, sem termos ou estruturas e frases muito difíceis ou muito diferentes a linguagem do dia-a-dia.
Livro: Coração - Na Itália, pátria do escritor Edmondo Amicis, não há quem não conheça o livro 'Coração', até hoje leitura obrigatória na maioria das escolas. Narrado em primeira pessoa (o narrador é o aluno), o livro entremeia episódios da vida escolar do narrador com histórias contadas por um de seus professores.
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