domingo, 26 de setembro de 2010

Litreatura

LIVROS

Primeiras escolhas

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o primeiro contato com a literatura infantil e o desenvolvimento de uma cultura leitora são também responsabilidades de educadores, instituições de ensino e Governo
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michele espíndola e o filho Lucas: liberdade de escolha com criticidade é, para ela, o segredo de boas leituras
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Rejane Carvalho leva os filhos à livraria com frequência. A filha mais velha, Isabela, aos 10 anos, já é uma leitora assídua. O hábito de leitura dos pais tem, aos poucos, motivado os menores

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26/9/2010

Até certa idade, o público-alvo do gênero infantil sequer escolhe suas leituras. Assim, pais, educadores e governo acabam se tornando responsáveis por esse primeiro contato. Saiba mais sobre os critérios de escolha adotados para os pequenos

O hábito da leitura entre as crianças está sempre relacionado a terceiros. Além da fundamental influência familiar, é na escola que a alfabetização e a convivência com os livros são aperfeiçoadas. No caso da rede pública de ensino, além da figura dos professores, que orientam o contato com os livros, os responsáveis pela aquisição dos títulos também passam a fazer parte desse processo. Mas quais os critérios utilizados nessa seleção? A criança tem poder de escolha? E como fazer uma crítica à qualidade do gênero infantil na literatura?

Para muitas crianças, os livros paradidáticos, indicados pelas instituições de ensino, são as primeiras leituras. Nas escolas públicas do Estado, os acervos são abastecidos, entre outros, através do Paic (Programa Alfabetização na Idade Certa), ligado à Secretaria de Educação.

Fabiana Skeff é coordenadora do eixo de literatura infantil e formação leitora do programa. Ela e sua equipe são responsáveis pela seleção de livros adquiridos para os 184 municípios cearenses. O público-alvo são crianças de 5 a 7 anos, de baixa renda, em processo de alfabetização. Para Fabiana, os critérios de escolha de livros para esse público devem girar em torno da diversidade. "Primamos pela liberdade da criança de poder escolher seus títulos. Assim, nossa lista de livros precisa ser a mais seleta possível, para que o nosso público tenha muitas opções", explica.

No universo escolar, além da diversidade, todo o discurso pedagógico culmina no conceito de adequação. Autores e editores precisam estar atentos a uma série de características que enquadrem o livro como "adequado". Amanda de Vasconcelos, professora de Educação Infantil e Ensino Fundamental, concorda com o raciocínio.

No discurso de ambas as educadoras, Fabiana e Amanda, tanto a produção textual quanto o projeto gráfico, principais quesitos analisados, precisam sempre ser compatíveis com o nível de compreensão da criança, respeitando suas limitações. "Para uma criança muito pequena é difícil trabalhar com livros de muitas cores e desenhos. O pequeno precisa identificar aos poucos o que está vendo", explica Amanda.

Segundo Fabiana, gêneros como o conto e a poesia valorizam o imaginário infantil, "resgatando as histórias da tradição oral e o ´era uma vez´". Quanto ao texto, a correção gramatical é avaliada, mas, além disso, as palavras precisam estar ligadas ao cotidiano das crianças. A quantidade de palavras e frases e até tipologia adotada (estilo e tamanho das letras das palavras) também são analisadas.

Público e particular

Professora há seis anos, Amanda conhece a realidade de escolas públicas e particulares em Fortaleza. Atualmente, trabalha com crianças de três e seis anos de idade. Em escolas pagas, com alunos cujas famílias possuem melhores condições financeiras, apesar dos critérios de adequação, é dada aos estudantes certa autonomia.

Pequenas feiras são feitas dentro das salas de aula. Nelas, os alunos escolhem quais livros querem ler durante o ano. "A escola me envia os exemplares, seleciono os que considero adequados ao perfil dos meus alunos, os que tenham algum vínculo com o que pretendo trabalhar em sala, e depois deixo para a livre escolha deles", comenta Amanda.

Na escola pública em que trabalha, a realidade é um tanto diferente. Livros existem, muitos, predefinidos por programas de aquisição semelhantes ao Paic. Mas a apresentação dos livros aos pequenos exige mais esforços. "Algumas particulares, por exemplo, selecionam obras só para serem lidas com os pais. Nas públicas, a escola é, muitas vezes, o único lugar de contato da criança com o livro. Muitos pais sequer sabem ler ou nunca adquiriram um livro. Não é fácil tirar 30, 40 reais de um orçamento apertado para comprar um livro infantil de 20 páginas, infelizmente".

Literatura e estética

Questionada sobre a qualidade literária e estética das produções, Fabiana ressalta a delicadeza da tarefa de classificá-las. "Fazer crítica à literatura já é muito difícil, à infantil é mais ainda. Não me sinto à vontade pra dizer que o livro de um autor é ruim", revela a coordenadora. Condena, no entanto, livros que demonstrem traços de discriminação, que de alguma forma firam preceitos éticos. "O livro infantil tem de necessariamente estar ligado à formação cidadã. Ele precisa orientar a criança, auxiliá-la na compreensão do mundo", acrescenta a educadora.

Na opinião de Amanda, contudo, o aumento vertiginoso de volumes infantis no mercado dificultou as escolhas dos professores. "Existem livros de todos os jeitos, com luzes, autorrelevo, peças montáveis, mas que se preocupam muito pouco com a qualidade literária e gramatical até. Alguns têm histórias rasas, pouco elaboradas. Outros não têm, por exemplo, um vocabulário rico, instigante para as crianças", alerta a educadora.

Para ela, a literatura infantil não precisa ter obrigatoriamente uma intenção pedagógica, mas os livros escolhidos para serem trabalhados em sala de aula, sim. "Acredito que os livros escolares precisam conter um ensinamento, mas a literatura é livre. Existem obras infantis apenas para o divertimento, e são leituras também importantes para a criança". Segundo a professora, excelentes livros infantis são aqueles que podem ser lidos por crianças de todas as idades e que, apesar do conceito de adequação, façam parte das preferências até de adultos. Mas estes são um tanto mais raros.

Leitura e hábito familiar

A última edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2008), promovida pelo Instituto Pró-Livro, revelou como simples costumes familiares são fundamentais no processo de formação leitora. Cerca de 60% dos entrevistados considerados leitores se acostumaram a ver os pais lendo e foram presenteados com livros durante a infância, enquanto 63% de não-leitores nunca ou quase nunca viam esse hábito em casa e 85% deles nunca ganharam esse tipo de presente.

Em Fortaleza, no fim de uma tarde de quarta-feira, uma parada depois da escola e uma saída com os filhos culminaram na ida à livraria. Assim é que duas mães, Rejane Carvalho e Michele Espíndola, aproveitaram a tardinha para ambientar seus pequenos à leitura. Rejane é funcionária pública e mãe de três filhos, assim como a publicitária Michele. Ambas as famílias mantêm em casa o hábito de ler.

Literatura e consumo

Ainda trajando o uniforme do colégio, Lucas, de nove anos, filho mais velho de Michele, se divertia entre as estantes e trazia para a mãe os preferidos. Segundo ela, Lucas ainda não é tão afeito à literatura. A publicitária recorre ao passeio na livraria a fim de incentivá-lo. Para ela, a indicação da escola ajuda os pais nesse processo de formação leitora, mas é preciso criticidade. "Procuramos ler os livros da escola junto com eles, são geralmente muito bons. Mas, sempre que podemos, gostamos de comprar alguns diferentes, porque os do colégio, como são mais baratos, nem sempre têm tanta qualidade de impressão e acabamento, por exemplo".

A publicitária observa como o poder aquisitivo parece ainda estar relacionado ao acesso à leitura. "Os títulos infantis carecem de apelo visual e gráfico e quaisquer desses recursos encarece muito o produto final. Lá em casa são três crianças, não posso levar um livro muito caro pra um e deixar de presentear os outros. Assim, isso demanda pesquisa", comenta Michele. Para ela, a crítica da qualidade literária do gênero exige conhecimento. Na dúvida, a mãe acredita na escolha do filho. "Ele me traz o que mais gosta. Dou uma olhada e, se for viável, levamos", comenta.

Costume de casa

Enquanto isso, Isabela seguia quieta à poltrona, folheando um exemplar. A filha mais velha de Rejane tem 10 anos e, desde os seis, lê frequentemente. Isabela estima, entre uma página e outra, que deve ler em torno de 15 livros por ano. A indicação dos amigos ajuda na escolha, mas ela não faz muita distinção de gênero. Gosta de livros de aventura e, apesar da pouca idade, dispensa a necessidade de gravuras e não se importa com a quantidade de páginas. O hábito, aliás, concedeu-lhe certa percepção para, na medida do possível, deitar um olhar crítico sobre o que lê. "Tem livros que começo e não termino porque não gosto da escrita. O autor demora pra chegar na ação. Não tenho problema com nível do livro. Se tem alguma palavra que eu não entendo, procuro no dicionário ou pergunto à minha mãe", comenta Isabela. Rejane considera que dar liberdade para que a criança escolha o livro é essencial. "Sempre trago eles à livraria, mas não interfiro. Deixo todos assim, à vontade, olhando os livros, lendo algumas páginas. Só o fato de virem aqui já é um estímulo", observa.


MAYARA DE ARAÚJO
ESPECIAL PARA O CADERNO 3

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